segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A que se reduz afinal a vida?

Salvador Dali, A Persistência da Memória

A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada… De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos. Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões tão nítidas como na primeira hora: hoje ouço como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede. O resto vai-se com o fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que faça, cada vez se afastam mais de mim… Algumas sensações, ternura, cor, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frívolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabedelo de oiro, a outra-banda verde… Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquela laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no inverno em que secou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.

Lá está a velha casa abandonada e as árvores que minha mãe, por sua mão, dispôs: a bica deita a mesma água indiferente, o mesmo barco arcaico sobe o rio, guiado à espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola do pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a ver, e não há lágrimas no mundo que os façam ressuscitar.

 
Raúl Brandão, Se Tivesse de Recomeçar a Vida

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Penélope


Penélope,
há muito que não te vejo, nem sei de ti... Separam-nos as fronteiras do tempo. Anos passaram. Tróia! Sempre Tróia! Esta dura guerra parece não querer terminar e a verdade é que a minha impaciência tende a aumentar. Voltarei a ver a cor do teu olhar?.. E Ítaca? Voltarei a pisar a minha pátria? Olho o mar... Afaga-me a brisa ardente e consome-me a dor da distância.

[...]

É noite. Volto a contemplar o mar. Aquiles e os seus homens preparam-se para repousar. Devia fazer o mesmo, mas falta-me o sono. Faltas tu! A ideia de poder não regressar a casa aterroriza o meu espírito já tão pouco crente. Desanimado eu? Talvez.
As horas vão passando... Não tarda, o sol voltará a colorir o dia, afastando a escuridão da noite. Continuo sem sono. Não sou o único. Agamémnon também está de pé. Caminha de um lado para o outro na esperança da chegada de Hipnos.

[...]

Abraça-nos já a aurora de dedos róseos. É o anúncio de mais um dia. Tenho de ir. Aguarda-me a árdua tarefa de lutar contra os senhores de Tróia. Tróia!.. Sempre Tróia!..


Cassandra, Abril de 2009/ Quadro: "Penelope and her suitors", John William Waterhouse (1906)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

QUO VADIS?


QUO VADIS?quo vadis? quo vadis? quo vadis? quo vadis? QUO VADIS?!...

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Mais palavras para quê?... Simplesmente genial!

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!

A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!


Que mal fiz eu aos deuses todos?


Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!


Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.


Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Lisbon Revisited, Álvaro de Campos

O que há em mim é sobretudo cansaço...

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.


A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...


E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...


Álvaro de Campos

Vita... quid est?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Ao passado, a Lisboa, aos AMIGOS!...

Às coisas e aos lugares não se pode voltar, nem mesmo voltando!







Cassandra (Lisboa, 1999/2005)

...

Pergunto às estrelas, ao mar, ao vento que novidades têm para mim.
Procuro-TE nas entrelinhas das respostas do vento, do mar, das estrelas.
Nada vejo.
[...]
Olho o mar, testemunho dos nossos devaneios.
Outrora, loucos, amantes,

enrolámo-nos na areia salgada que nos serviu de colchão.
Também ela foi nossa testemunha!
Em tempos...
Em tempos fomos assim!

Hoje?
Que somos senão meros mortais perdidos na multidão?
[...]
Continuo a perguntar às estrelas, ao vento, ao mar que novidades têm para mim.
Estranhamente, nada ouço.
Talvez porque nada haja a dizer.


Cassandra (Maio, 2009)