segunda-feira, 29 de março de 2010

DA [DES]CONSTRUÇÃO DO HOMEM

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas - que já têm a forma do nosso corpo - e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares...  É o tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos" (Fernando Pessoa)




Pensar o ser é pensar a realidade que o rodeia, é reflectir o seu “mundo”, não enquanto espaço físico, mas psicológico e sentimental. Pensar o homem passa necessariamente por nos debruçarmos acerca de temas como o fatum, a brevidade da vida, a passagem do tempo, mergulhando, assim, naquilo que possui de mais particular. E o homem é, por excelência, um ser inexaurível. É interessante questionarmo-nos acerca de esse ser dotado de racionalidade quando muitas das suas atitudes revelam laivos de irracionalidade. Mais interessante ainda é termos a capacidade de lutar com “este eu sendo eu”, sempre com o intuito de compreender o homem que se revela antagonicamente como “the beauty and the beast”… Temas muito debatidos, é certo. Porém, não estão esgotados. Longe disso. São temas que acompanham o homem desde a sua existência e, por isso, permanentemente actuais.
Em relação ao destino, é fundamental a questão da liberdade, tão debatida ao longo dos tempos. O que parece mais comummente aceite é que o homem não é ingenuamente livre, nem é totalmente escravo. Desde a leitura dos poemas Homéricos que ficamos com a impressão de que o homem não é um ser totalmente livre. Lembremo-nos de Aquiles: desde o início ele sabe que morrerá. Aliás, toda a Ilíada o refere; ele próprio o admite: morrerá quando os deuses o quiserem. A verdade é que a liberdade está limitada a “poderes” que nos ultrapassam. É como se a liberdade fosse a resposta ao destino e talvez seja um privilégio ter destino.
O amor é também um dos topoi da literatura. Este sempre a acompanhou, originando diversas “filosofias de vida”, embora encarado de diferentes formas, consoante o tempo e época – umas mais racionais e outras mais emocionais.
Directamente relacionado com este sentimento surge, inevitavelmente, a problemática do prazer. É como se o homem estivesse forçosamente emaranhado nestes problemas. Uma das formas de os “resolver” é buscar uma felicidade relativa, sem desprazer ou dor, através de um estado de ataraxia e uma certa tranquilidade capaz de evitar a perturbação. Porque o homem é um ser, por natureza, intranquilo, mas também porque ninguém consegue viver continuamente na intranquilidade, o homem relativiza a dor e muitas são as soluções procuradas. Ovídio, por exemplo, escreve Remedia Amores ou não fosse este um tema tão soante na literatura.
Todavia, “nem só de amor vive o homem” e, voltando ainda à problemática da intranquilidade, constatamos que muitas são as suas inquietações: a efemeridade da vida, a passagem do tempo, a saudade, a morte, a dor da ausência, a liberdade, entre muitas outras. Haverá quem não questione isto?
Ao longo da história da humanidade, diversas foram os modos de retratar o homem e a sua condição enquanto humano. Desde a antiguidade, assistimos a um “desfile” de géneros que se demarcaram e continuam a demarcar-se precisamente pela sua temática. A tragédia, a comédia e a poesia não são mais do que exemplos disso e a acompanhá-los estão ilustres autores como Ésquilo, Sófocles, Aristófanes, Safo, Ovídio, Horácio, Dante, Camões, Pessoa, Sophia, entre muitos outros!
A verdade é que quer uns, quer outros fundam a sua filosofia prática na reflexão sobre o fluir do tempo, a futilidade dos bens terrenos, os enganos da Fortuna e a morte, pregam a moderação dos desejos e dos prazeres, as delícias do viver campestre, a vantagem em iludir o sofrimento com o vinho e o espectáculo da natureza. Sabem que não há felicidade completa, sabem que perante o infortúnio devemos compor um sorriso tranquilo e descuidado.
Mais do que valorizar a arte de um ou de outro, mais do que chegar a conclusões, é importante sobrelevar a intemporalidade das suas preocupações: a angústia do homem perante a brevidade da vida, a inevitabilidade da morte e consequentemente a interminável busca de estratégias de limitação de sofrimento que tão bem caracteriza a vida humana. Assim, não será a literatura também a (des)construção do homem? Não será preciso des(construir) para construir? Não será a aprendizagem um processo de desaprendizagem, um aprender a desaprender? Como refere Pessoa, esse “(…) É o tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos".

Cassandra (Março de 2010)